domingo, 6 de abril de 2014

Episódios da Vida Real


                                     
O caminho era sinuoso, de piso irregular e escorregadio, com covas e pequenas regueiras abertas pelas águas do inverno chuvoso. As estreitas passagens mais pareciam armadilhas para os passos dos caminhantes.

O velho burro, carregado comigo e com o odre do azeite, comprado na aldeia próxima ao homem do lagar, seguia como que guiado por um moderno g.p.s. naquela noite escura e chuvosa com um andamento regular, pensando certamente no conforto da sua cavalariça, devorando a palha seca.

Com menos de 10 anos, eu sentia o desconforto da situação, cansado e sem jantar, tremia ainda com medo de cada árvore ou planta que rodeava o caminho, tudo me pareciam assaltantes e fantasmas. Meu pai ao lado do burro, falava mais alto para eu não adormecer e sentir mais segurança.  

Ele dizia,viemos de noite,para evitar que a guarda,tenha conhecimento: estávamos nos anos mais duros da segunda guerra mundial, tudo o que se comprava ou vendia teria de ser controlado por senhas de racionamento.

Nós vivíamos numa vila do interior controlada pelos caciques da terra incluindo o padre, que além das atividades religiosas,controlava ainda as politicas, através das confissões e do poder da sua autoridade. Chegados a casa,molhados e sempre em sobressalto, com receio dos olhares dos próprios vizinhos, à nossa espera a minha mãe, tinha uma sopa de carne, com toucinho e farinheira que nos confortou o estômago e devolveu a paz ao nosso corpo.

Meu pai homem de modos afáveis,demonstrava a cada momento o seu bom coração, com tendência a confiar sempre nas outras pessoas, o que o conduzia a ser enganado constantemente na atividade que exercia. Tinha uma pequena oficina de sapateiro onde as dificuldades nos pagamentos aos fornecedores estava sempre presente,tudo isto como consequência dos fregueses não lhe pagarem.  A dona Hermínia,minha mãe foi sempre uma mulher de coragem,tinha uma risada espontânea,e afogava as suas desventuras e desgostos de modo a que mais ninguém tinha acesso.  Ambos vivíam em função dos filhos. Os dois mais velhos já trabalhavam fora,eu e a Carma estávamos em casa, e tanto os pais como ela me mimavam, pois era o mais novo e por isso sempre defendido por todos. Com dificuldades é certo,mas a mãe sempre improvisou comida para a nossa mesa.A horta onde ela plantava couves, alfaces,nabiças,batatas,e outros legumes.

Com os restos da comida e as abóboras e gilas,durante o ano engordava um ou dois porcos, que quando gordos se fazia a matança e as carnes eram enterradas em sal,e assim conservadas durante o ano. Das carnes mais moles eram feitos enchidos que depois de fumados,eram metidos em azeite e conservados, para comer nos domingos ou dias de festa.

Dos enchidos fazia-se o paio, que era a bexiga do porco bem lavada com água e limão,e depois cheia de carne de chouriço, febras e gordura,era fumado e metido em banha do porco,dentro de um pote de barro. Este paio era comido no dia da malha.

A malha é normalmente em Agosto, em dia de bastante calor, o trigo e centeio era ceifado, e atado em molhos, estendido na eira onde os homens, normalmente os vizinhos em grande confraternização com moeiras, feitas de madeira e com cantigas e desafios os malhadores batiam o trigo até ficar só a palha. O grão era limpo e guardado em sacas, que conforme as necessidades, se ia  moendo no moinho de vento ou de água. O meu pai tinha uma cota no moinho da ribeira da galega e como o tempo de cada sócio era dividido, eu e o pai íamos à noite, por vezes com mau tempo aproveitar o espaço de exploração que nos cabia, com uma lanterna, na mão até acabar o nosso tempo.

Depois em farinha a mãe amassava-o e com fermento, cozia-o no nosso forno e assim se comia o pão.  Aos Domingos e festas comíamos pão de trigo mas normalmente comíamos pão de milho.

O milho era plantado na horta e regado durante o verão, estas regas eram o maior tormento da gente pobre, a água estava em poços de 30 ou 40 metros de profundidade e era em picotas, isto é, um aparelho de madeira,que era manuseada por uma pessoa. Esse trabalho era duríssimo, porque normalmente as mulheres eram as mais sacrificadas em virtude, dos homens estarem fora noutras atividades ainda mais duras.

 As pessoas mais abastadas, normalmente tinham uma nora, que era um mecanismo de ferro, puxado por um animal, normalmente mula e andando à volta do poço com os olhos tapados, puxava a água por meio de alcatruzes, durante muitas horas.

O milho era seco em eiras,e depois de bem seco,os donos de cada casa,organizavam as descamisadas. Juntavam os vizinhos com os rapazes e raparigas da terra,com cantigas e muita paródia, até aparecer um milho rei, que era uma espiga mais escura. Quem achasse essa espiga tinha direito a um beijinho de todos: esse era o prêmio porque todos os rapazes ansiavam.

Os rapazes estudavam até a quarta classe e depois iam trabalhar,para fora ou os que ficavam,exerciam a sua atividade no campo.  Só os mais afortunados,com família influente seguiam os estudos. A grande maioria iam para o seminário, esta era a grande jogada, pois faziam o 7º ano e depois saiam, para continuarem os estudos, ou se empregavam em bancos, ou outras atividades mais lucrativas.

Todos os que ficavam só saiam para a tropa. Em seguida ou ou policia ou emigravam para Africa ou Brasil, não tinha mais saídas.  As raparigas, raramente alguma seguia os estudos, só se fosse filha de alguém bem implantado na sociedade e de bons rendimentos. Elas aleé do muito trabalho da casa e do campo, enfeitavam-se para que algum africano ou brasileiro as chama-se para casamento, a grande maioria casavam por procuração, praticamente sem conhecer o futuro marido.

Eu tinha 13 anos quando acabou a guerra, como os irmãos estavam fora e tinha feito a 4ª classe, a grande parte dos meus colegas de estudo sairam, para continuar. Um para os pupilos do exército e três para o seminário de Portalegre, por influência do padre. Eu apesar de bom aluno, o meu pai não tinha capacidade para me mandar estudar noutro lugar afim de continuar os estudos. Pedi-lhe para ele falar aos meus irmãos no sentido de haver alguma atividade para eu sair,e ele disse que não, pois eu era o mais novo e teria que ficar na sapataria, para haver continuidade.                                                          
Este foi o meu grande sofrimento,pela razão de que eu não gostava de ser sapateiro, trabalhava com ele, mas sempre contrariado,não me realizava. Com 14 anos pedi para me deixar ir à ceifa, meu pai não queria,mas eu tanto insisti que fui.

O manajeiro era o homem que ajustava, a ceifa de uma grande ceara no Alentejo com os donos dessas propriedades, por isso a ceifa era da responsabilidade dele, contratava uma quantidade de homens para durante 40 dias,que era a época da ceifa fazerem esse trabalho e no fim os donos pagavam o que tinham ajustado e todos os homens reuniam e deliberavam quanto dariam aos mais novos, como eu e o resto era distribuído por eles.

O sr. Romão morava num local perto da nossa casa, e o meu pai falou-lhe meio a brincar e ele disse que sim eu podia ir, era bem constituído e dava jeito levar alguns miúdos, pois ganhavam pouco e faziam os serviços mais leves, como dar água aos homens, e atar o trigo em molhos, ou ainda trazer o almoço, para junto da ceifa.

A minha excitação foi grande, esta era a minha grande aventura. A partida foi marcada para um dia de maio, a minha mãe apoiava-me pois via-me feliz, mas chorava pelos cantos. Ela meteu num saco de pano alguma roupa, o pai afinou-me as botas e no dia da partida deu-me um saco com farnel para a viagem. Na hora da partida fugiu para a horta afim de não me ver ir embora. 37 homens 4 miúdos como eu e 3 mulas carregadas, com os sacos das roupas, saímos todos a pé em direção a Portalegre.

 Andamos todo o dia e ao pôr-do-sol chegamos à vila de Gavião. Num espaço de antigas cavalariças, muito cansados deitamos no chão cada um com a sua manta, dormimos até de  madrugada, teríamos de sair muito cedo, porque a charneca entre o Gavião e Tolosa é muito quente e por isso teríamos de aproveitar o fresco da manhã. Pelas 10 horas entramos na vila de Tolosa e à beira da estrada todos nos sentamos, cada um desatou o saco do farnel, trazido de casa e começou a comer. Ao abrir o meu saco e embrulhado num pano branco, eu tinha algumas rabanadas, feitas com todo o carinho pela minha mãe.São fatias de trigo embebidas em ovo e fritas e depois polvilhadas com açúcar. Ao começar a devorar aquela delícia, o homem que estava ao meu lado, disse em voz alta,para os outros ouvirem: olhem o Artur trás fatias de mulher parida. Todos olharam em grandes risadas gozando aquele momento à minha custa.Envergonhado, tentei disfarçar, meti as rabanadas no saco, agarrei-me ao queijo, e só às escondidas fui comendo aquele mimo de minha mãe. Fui gozado todo o tempo por este episódio.  Ao anoitecer desse dia chegamos à herdade,nos arredores de Portalegre,eu já não sentia os pés, cheios de bolhas, dormimos ao ar livre perto do local onde iríamos começar o trabalho.

 Assim que o dia começou a clarear, houve voz de levantar e preparar cada um com os seus artefactos protetores, os homens lançaram-se ao trabalho como se fosse para fazer tudo num dia. Nestas empreitadas não havia horário, quando todo o trigo estivesse ceifado, o trabalho estava feito, por isso ninguém reclamava e se alguém se esquivava ao trabalho ou não se esforçava, na reunião do final cortavam-lhe na quantia a receber.

Os homens ceifavam e nós os mais novos atávamos o trigo em molhos,que eram depois recolhidos e postos em medas, para a máquina fazer a debulha,mas isso já não era connosco. Os dias começavam antes do sol nascer e ao almoço o descanso era de duas horas, para comer e fazer a sesta, depois era até se ver. O calor era o pior inimigo, com o trigo muito quente, as mãos já com feridas, pelos cortes das palhas. Eu pensei muitas vezes que este seria o trabalho mais duro do mundo, mas com o passar dos anos sei que haverá pior. À frente do corte eram constantes, os sustos porque as cobras, lagartos e outra bicharada assustados pela chegada de estranhos saltavam por vezes debaixo dos pés ou metidas nos molhos do trigo.

Nestes 40 dias só tínhamos um dia de descanso, ao meio, que servia para lavar a camisa na ribeira. A minha quando a tirei do corpo com todo o suor acumulado, punha-se direita como se fosse de madeira, depois de lavada e de nos lavarmos na ribeira parece que o nosso corpo tinha menos 10 kg.

Por vezes de noite vinha a trovoada e grandes chuvadas, nós dormíamos sempre no campo, normalmente debaixo de uma árvore, por causa da cacimba da manhã, mas com trovoada ninguém ficava debaixo das árvores, pois como o campo era plano os raios caiam em cima das árvores,e quem estiver de baixo, era uma vez.

Colocava-nos 4 molhos de trigo em pé,fazendo um círculo sentavamos-nos no meio e depois abríamos o chapéu de chuva a água corria pelas palhas do trigo e passava por baixo de nós nas leiras do trigo. Assim estávamos até a chuva passar.

Houve uma semana em que choveu muito, durante vários dias e resolvemos ir para o monte afim de nos abrigarmos. À noite o patrão disse: se quiserem hà ali favas secas demolhem e cozam-nas que são boas. O cozinheiro pôs a gamela ao lume e com a água a ferver pôs as favas, depois de estarem cozidas, os gorgulhos eram tantos no cimo do caldo que era branco e não da cor das favas. É claro a maior parte comeu, eu não fui capaz,mas ficar com fome não foi a melhor solução.

Ao terminar o trabalho, voltamos pelo mesmo caminho e no último dia no alto de Belver os homens reuniram e deram-me 400 escudos. O meu pai quando eu fui deu-me 100 escudos e disse leva podes precisar para qualquer coisa, e ao chegar a casa entreguei-lhe todo contente os 400 escudos mais os 100 escudos. que me tinha dado,pois não me foram precisos.

Esta foi a minha primeira saída, e fui mais quatro anos seguidos, até ganhar como homem. Neste espaço ainda fui um ano para a apanha da azeitona, na região do Entroncamento. Aqui era o frio e gelo que nos castigava, porque era Novembro, mas aqui era compensado pela companhia das raparigas, eu aprendi a divertir-me muito com elas, arranjei amizades e boas recordações que ficaram para o resto da vida. Em cima das oliveiras sempre havia quem  e aos fins de semana os bailes eram uma festa.
       
Em casa o tempo ia-se passando, com o meu amigo António, aos sábados à noite,o homem dos transportes deixava os barris do vinho à porta das tabernas, para serem consumidos ao domingo. Eu e ele arranjamos uma palha de trigo e tirávamos a rolha do barril, metíamos a palha, bebíamos até querer, branco ou tinto.

Num mês de Dezembro, meu pai diz-me: na terça-feira vais com o nosso burro na companhia do Pedro Carvalho, ele leva o dele e vão a Abobreira, uma povoação a vários quilómetros, buscar três centos de eucaliptos, para depois plantar nos cabeceiros, porção de terra nossa propriedade. No dia aprazado lá fomos, mas choveu durante todo o dia, quando chegamos, o homem mesmo a chover foi arrancar os eucaliptos ao canteiro, e em sacos carregamos os burros.

Já de volta passamos noutra aldeia, onde encontramos o moleiro, que moia o pão nas azenhas. Ele vendo-nos todos molhados e sem almoço, levou-nos para a adega, aí não sei bem o que se passou, pois deram-me um grande copo de vinho. Nada mais me lembro. Acordei no outro dia na minha cama com uma dor de cabeça terrível. Soube que o meu colega de viagem, me colocou em cima do burro e me trouxe até casa, onde me entregou aos cuidados da mãe. Essa foi a minha primeira grande bebedeira.

 Aos fins-de-semana os rapazes juntavam-se em grupos e percorriam as aldeias à volta da vila quando sabíamos da existência de algum casamento ou uma festa, porque faziam sempre bailes, contratavam o homem da concertina e as raparigas vinham dançar.  Esta era a grande oportunidade de contatos, com os rapazes da vila, ou de outras aldeias.

 Aqui se iniciavam os namoros, na maior parte das vezes sob o olhar atento das mães ou irmãos que vigiavam de perto a atividade das raparigas em idade de namorar.

No regresso dessas noitadas, cheios de fome e por vezes bem bebidos, passávamos pelas hortas e tudo o que era comestível desaparecia, fruta, melancias, era uma razia. Ao outro dia os donos sabiam quem tinha feito aquilo, mas como não podia provar, tudo era esquecido.Os rapazes mais inibidos tinham muitas dificuldades em relacionarem-se com as raparigas, ou porque o controlo era grande ou o seu acanhamento não lhe permitia o primeiro passo.

Eu tinha mais à vontade, porque com a ida azeitona, o contacto directo com as raparigas, da vizinha vila de Cardigos me desinibiu e os namoros seguiam-se uns aos outros.Todos os domingos eu ia para Cardigos e de lá voltava depois dos bailes pela noite dentro, apesar do medo que me tolhia o andar, principalmente quando passava no alto da Pracana onde se cruzam duas estradas porque as histórias que sempre nos contaram, era que nesse local as bruxas e lobisomens faziam os bailes.

Todas as histórias da nossa infância, eram de almas do outro mundo e almas penadas, com medos dos fantasmas, que embora eu quisesse ser forte, o medo era grande.O outro ponto critico era a passagem obrigatória junto ao cemitério, sítio mais tenebroso dos nossos receios. Esses medos não nos abandonavam, na nossas camas e ao abrigo da nossa casa, encolhido na roupa eu sonhava com lobos, lagartos e cobras e ainda com almas saindo das campas pedindo socorro. Este era o resultado das historias que os mais velhos nos contavam à lareira nas noites do longo inverno e com a nossa ingenuidade e pouca cultura apanhávamos tudo aquilo como real.

A zona centro do país, onde eu vivia era uma zona esquecida pelo poder central, dominada pelos homens do poder não havia direito a qualquer tipo de progresso. Os votos em cada vez que havia eleições, eram seguras, raramente havia alguém com coragem para votar contra e se o fazia estava condenado a desaparecer. A pide estava bem informada de tudo o que se passava. Eu tinha 14 ou 15 anos quando o meu pai me diz: Artur vais a Mação, que era a sede do concelho, pagar esta contribuição e no dia seguinte apanhei a carreira e fui. Na povoação de Chão de Lopes entrou um homem nosso conhecido, pois tinha aprendido a sapateiro na nossa casa, sentou-se ao pé de mim e fomos conversando. Ao descermos da camioneta em Mação passou uma carrinha a grande velocidade e lançou no ar muitos papéis e nós ingenuamente, apanhámos um e começamos a ler. Era propaganda da campanha eleitoral do general Norton de Matos, adversário de Salazar.

Quando estávamos a ler um guarda republicano, disse-nos venham comigo à esquadra. De boca aberta sem saber o que isto significava, lá fomos..Ao chegar, ao meu companheiro deram-lhe um empurrão para dentro de uma sala e a mim o chefe interrogou-me , eu disse que não sabia o que era aquilo, pois vinha só para pagar a contribuição. O chefe disse-me: vais pagar a contribuição e apanhas a camioneta de regresso. Eu assim fiz. Mas o homem que ia comigo nunca mais o vi, desapareceu do meu convívio, não soube mais dele.

Isto acontecia quando alguém tentava quebrar o espartilho em que se vivia. Havia informadores que disfarçadamente nos espiavam e essa informação seguia o seu destino. Os milhões de fichas encontradas na sede da Pide depois do 25 de Abril provam que todos os que tinham alguma importância estavam controlados.

Neste ambiente chegou o dia em que fui chamado para a tropa, para mim foi um dia feliz, era a saída do casulo materno, para ser tratado como homem. Apresentei-me em Lisboa, passei depois pelo Entroncamento e voltei a Lisboa onde fiz o resto da tropa. Ao fim de dois anos, sem dinheiro sem perspetivas o futuro era negro. O comandante disse-me para eu continuar podia estudar, e assim teria o futuro mais assegurado. Os que aderiram a este programa, com a guerra que veio a seguir subiram rapidamente de posto. Quando estava a ser desmobilizado rebentaram as primeiras bombas nas linhas de caminho de ferro da Índia, os primeiros soldados saíram do meu quartel, já não me apanhou.

Antes de sair o meu tio já muito doente, com a Lucinda foram ao quartel, convidar-me para vir trabalhar para a loja pois a empregada que lá estava ia casar e não voltava. Sem mais perspetivas claro aceitei.

Já não voltei  à Amêndoa, tinha saído de lá sem vintém e agora saia da tropa sem um tostão, por isso era preciso trabalhar afim de ganhar ânimo para continuar a viver.

 A minha vida na loja não foi fácil, eu estava fora de todo o mecanismo do negócio, tinha dificuldade em tudo e demorei algum tempo adaptar-me.  Valeu-me a antiga empregada que estava de saída para casar, pois esta era a causa da minha admissão, ela ensinou-me com paciência o que pôde, pois o Joaquim e a Lucinda não tinham pachorra para ensinar alguém que caiu ali fora do seu ambiente.

Tentei estudar e inscrevi-me na escola à noite, como tinha que trabalhar até às 23 horas e dois dias por semana saia às 20. Aproveitando esse espaço, só fazia as disciplinas que havia nesses dias, assim foi durante dois anos, depois não tinha saída, o estudo parou. Alguns anos depois passamos a fechar às 20 horas e tentei matricular-me novamente.

Foi-me dito que tinha havido alteração no ensino e todas as disciplinas feitas de nada valiam, para continuar teria que fazer o ciclo para depois continuar. Matriculei-me fiz o ciclo com a ideia de continuar, mas eu já casado com uma filha, vivia com imensas dificuldades em virtude de ter saído da casa da minha irmã, com quem entrei em rotura e os estudos pararam novamente. Só vários anos depois fiz o nono ano e por aí fiquei, porque tudo estava já fora de tempo.

Muitas histórias se passaram em cinquenta anos de atividade na loja, além do relacionamento com as pessoas havia a luta de um livreiro como eu, e a P.I.D.E., sempre perseguindo os livros e autores, porque o livro era a forma de dar conhecimento, o que o governo teimava em evitar. Por 45 vezes eles entraram e removeram a casa levando livros que eles consideravam proibidos. Assinávamos um auto de apreensão e nós ficávamos sem eles.
           
Houve um dia em que o editor «Petróni» me telefonou, dizendo que ia lançar um livro de um autor proibido, mas que tinha sido autorizado por Salazar. Eles tinham andado os dois no seminário e sem o ler disse-lhe para publicar.

Eu li no Diário Popular essa notícia. Vendo que era uma oportunidade fui à baixa e comprei no editor, 70 livros paguei deram-me o recibo e trouxe os livros; como estava seguro enchi uma das montras e os outros ficaram no embrulho.

Naquela tarde vendi 14, e calmamente fui para casa. No outro dia de manhã, quando fui abrir a porta, estavam dois homens à minha espera e entraram comigo e apreenderam-me os livros todos. Mostrei-lhe o recibo e a notícia do jornal mas eles levaram-me os 56 livros, eu pensei ter sido enganado. Ao outro dia o mesmo jornal, escreve que o autor se queixou a Salazar, e o livro foi novamente autorizado. Com pura ingenuidade, eu fui à sede da Pide, na António Maria Cardoso, levei o recibo, o auto de apreensão e perante a notícia do jornal, pedia que me devolverem os livros.

O homem que me atendeu com maus modos, mandou-me esperar o que fiz durante 4 horas, pelo meio da tarde, mandaram-me entrar e disseram:  dia anterior vendeu 14 livros, vai pois dizer-me a quem vendeu  livros. Apercebi-me aonde queria chegar e eu disse que não sabia, pois e subir e fui recebido por um homem, com uma dactilógrafa. Ele disse-me: o Sr. vem pedir os livros, mas são pessoas que passam, vêem o livro na montra e compram, eu não sei quem são. Depois de tanto insistirem para eu reconhecer alguém eu disse. O mais que posso fazer é os Srs. meterem-me num carro e vamos por aí, para ver se reconheço alguma dessas pessoas. Por fim  desistiram, e disse-me: os livros estão naquele canto, pode levá-los.

Eu peguei no embrulho , mas só lá estavam 11 livros, reconhecendo a situação eu nada disse, raspei-me dali para fora tão depressa quanto podia. Eu era vigiado assim como alguns clientes meus, na loja costumavam vir conversar e passar algum tempo, porque moravam ali perto várias pessoas com grande destaque na época. O Almirante Cabeçadas figura em destaque no princípio do reinado de Salazar, o Major Silva Pais era visita assídua do nosso vizinho Barata do 19,o comandante da polícia ,também morava, na rua no prédio do Cardeal Cerejeira. Para provocar mal estar a esta gente, o Dr. Arlindo Vicente figura de proa da oposição , morava ali ao lado no bairro social do Arco Cego e era muito meu amigo, ele vinha comprar o tabaco e ficávamos a conversar. Os filhos e netos foram criados por ali. Nós assistimos a todas as perseguições de que foi vítima, várias vezes preso e os próprios amigos se afastavam dele para não serem envolvidos. Por estes motivos na nossa casa a Pide tinha quase sempre um homem disfarçado de cliente para ouvir o que se passava. Por esse motivo eu não tinha partido.

Na loja era de todos amigo, dos da direita, e amigo dos da esquerda, sempre me dei bem com todos. Ainda hoje sou assim, tenho as minhas convicções, voto naquele que de momento me oferece mais confiança, mas nunca admiti, um selo na testa dizendo a que bando pertenço. Esta atitude valeu-me continuar a trabalhar sem nunca ser incomodado.

Nos anos 60 comecei a praticar Judo, o que me proporcionou bons contatos. Médicos, Advogados e funcionários de bancos e outras repartições, fiz judo com o Zeca Afonso, com o Tengarrinha, e outros que estiveram na revolução do 25 de Abril.

O José Tengarrinha convidou-me para instrutor de um grupo pós-revolução, o que eu recusei, pois teria que estar ligado ao partido que ele estava a formar. Eu sempre com mentalidade de independência e liberdade, não quis aderir.

E fiz bem porque estava a trabalhar onde era amigo de todos e isso provou-se que era bom.
para mim, o difícil não é ter a Liberdade, o difícil é ser Livre.
       
Esta resenha de desabafos, foi dada como acabada em 3 de Março de 2014

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