Cruzeiro da Amêndoa

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Dois anos serão preciso
para um tagarela falar,
dizer coisas com juízo
e mais para aperfeiçoar.

Fala bem, não é discreto
sem querer alguém ofende,
ao dizer algo de incerto
outro novo ódio reacende.

Para ter esse bom pensar
dizendo palavras certas,
vai aprender, a se calar
e limando as suas arestas.

Só por volta dos sessenta
completa sua aprendizagem,
o maduro não diz, aguenta
eu espero aqui na paragem.

Diz aquele velho pensador
'pela boca, morre o peixe',
palavras que provocam dor
se atingem quem se queixa.

Se pretendes ser lembrado
cumpre tudo que prometes,
honra sempre o teu falado
e guia-te pelo que sentes.

Quando errares a afirmação
corrige-a sempre a seguir
perdoem-me esta confusão
porque eu não sei mentir.

Hoje reconheço esse erro
pelo que estava enganado,
dentro de mim sinto peso
também fui mal informado.

Alguém que assim não faça
é uma pessoa sem palavra,
não é honra mas sim farsa
pois mente na minha barba.

Esse homem puro não existe
sempre algum defeito temos,
e se ao errar ele insiste
então, mudar não queremos.

Noite longa e muito lenta
sem sossego nem descanso,
diz que a dor não aguenta
eu não sei e até me canso.

Estou triste de não saber
como que eu a posso aliviar,
vou por uma água a ferver
fazer um chá p'ra lhe dar.

Não tomou seus comprimidos
mas continua mal disposta,
peço que não perca os sentidos
meu anjo não deu resposta.

Pela manhã, chegou alguém
que já tomou conta dela,
pois eu admiro quem tem
essa preparação para ela.

Cuidador a tempo inteiro
de um doente dependente,
até não sendo enfermeiro
é anjo de um ser carente.

Estou a tentar recuperar
para isso vou aprender,
pois muito quero andar
sair de casa para te ir ver.

É difícil de desbloquear
cá por dentro tenho o nó,
a dificuldade para falar
pois, só o faço estando só.

- Para dar o primeiro passo
eu me inibo e tenho medo,
gostava de ter teu abraço
e de sentir teu aconchego.

- Por tudo que estou ouvindo
essa timidez é grande,
avance, eu lhe estou pedindo
venha a meus braços e ande.

- Essa timidez não me inibe
pois sou aberto e franco,
mas meu andar me proíbe
de andar, porque sou manco.

No alto escalão de idades
tu só pretendes ter paz,
ter as contas todas pagas
e dormir quando és capaz.

Deitar-me à noite e dormir
sem entraves no pensamento,
do seu vizinho nunca ouvir
- Ele é um pedante ciumento!

Ter nas emoções um controle
fruto de uma vida já madura,
estar em paz com o futebol
ter tal amor que ainda dura.

Já não cabem mais ilusões
dos papagaios experientes
que com os bonitos sermões
o tentam gravar nas mentes.

Ser o mais idoso não é mau
quando não há dependência,
e um copo de leite com cacau
que nos acalma e dá paciência.

Moro entre o rio e o mar
na asas da cidade grande,
ouço os aviões a levantar
e os autocarros passando.

Durante o dia os velhinhos
pouco a pouco dando volta,
olham prédios dos vizinhos
mas recolhem à sua casota.

Na maré baixa no rio
as gaivotas vêm do mar,
em bandos e voando a fio
elas lá se vão alimentar.

Depois do seu papo cheio
e com a maré já a subir,
voltam e pelo mesmo meio
ao seu mar e vão dormir.

O meu bairro é sossegado
com muita gente de idade,
pensam pois têm saudade
do seu trabalho na cidade.

Alguém já passou no mundo
do meu círculo familiar,
deixou-nos e, lá no fundo
algo ficou do seu plantar.

Aqueles que já cá passaram
deixam também e levam de nós,
essa planta que cultivaram
já a herdei dos meus avós.

Nossa raíz já vem de longe
mas tratada como Deus sabe,
de um assassino ou do monge
pois respeita-la a nós cabe.

Nada vai nascer por acaso
porque tudo tem sua razão,
seja uma flor no seu vaso
ou o teu filho no coração.